domingo, 21 de agosto de 2011

Esteio: o clíck indiscreto do dia-a-dia, no tempo do armazém.

Com a instalação dos grandes supermercados na região, os avanços da tecnologia foram colocados a disposição dos clientes. Destacamos os cartões de crédito, a informatização, os amplos e modernos prédios com estacionamentos privativos e os funcionários especializados, mas que não conhecem a grande maioria dos clientes. Tudo isto é muito estranho para quem conheceu  o Esteio antes da sua emancipação, quando ainda era uma vila e não havia supermercados, centros comerciais, shoppings e outras modernidades.

Naquela época, os esteienses realizavam suas compras, nos armazéns ou nas vendas, como também eram conhecidos estes locais de comercialização de diversas mercadorias. Seria praticamente impossível obter todas informações das dezenas de armazéns que se estabeleceram em Esteio.


Armazem de antigamente - foto ilustrativa
Na fachada do prédio sempre estava escrito a palavra: “Armazém”, acompanhado do nome que nem sempre era mais conhecido do que o do seu proprietário. Em segundo plano podia se ler as palavras: ”Seccos e Molhados, Fazendas, Armarinhos e Miudezas em Geral”. Os mais conhecidos eram lembrados pelo nome dos  proprietários. Em Esteio: Aparício dos Santos, Luiz Guizoni, Pedro Cardoso, Egon e dona Laide, Olário Schmidt, Acendino Alves da Silva, Artur Dossena – O Baratilho São Paulo, na rua La Salle, esquina com a rua Alegrete,  Octávio Silveira Borges , Armazém e Açougue Maricá, Zagonel - Nacional e o  Brasil do Piccioni, que vendiam de tudo um pouco. Naquele tempo, os armazéns não eram assaltados, havia muita tranqüilidade e segurança. Esteio era uma cidade bem diferente.

  Atrás do balcão do armazém, geralmente havia uma enorme geladeira branca, com dois andares, oito portas, com um grande e barulhento motor elétrico em cima. O armazém do seu Scherer, parada 6, da rua 24 de agosto, por exemplo. Os primeiros armazéns não dispunham deste luxo. Um balcão de alvenaria protegia uma tampa de madeira, no chão e embaixo uma corda que alcançava o fundo de um poço onde eram armazenadas as caixas com as garrafas de bebidas que necessitavam de resfriamento.  Muito tempo depois apareceu a geladeira, uma espécie de cofre de metal revestido de madeira com uma porta onde, periodicamente, eram colocadas as grandes e pesadas barras de gelo, juntamente com serragem muito antes dos conhecidos refrigeradores elétricos.

  As paredes da venda, como também era chamado o armazém, eram cercadas por “escariola”, uma espécie de cimento “queimado”, massa corrida com desenhos coloridos (com pó de tinta xadrez, lembram?), pois não havia azulejos. O ambiente geralmente cheirava a fumo em rolo, querosene, aguardente, lacticínios, queijos, lingüiça, salame e charque. Em cima do balcão ficava o torresmo e o queijo novo. Os salames, lingüiças e costelas defumadas ficavam penduradas em um cabo de vassoura suspenso em linha horizontal, pelas pontas, por dois arames pregados no forro.

Geralmente o armazém era mal iluminado, atendido pelo proprietário, um homem de meia idade, gordo, conversador e bonachão que descansava o lápis atrás da orelha, auxiliado por um ajudante que entregava o rancho de carroça com um matungo ou pangaré, na casa do comprador. Diariamente ele levantava bem cedinho pra receber o pão sovado, d’água ou doce, os tarros de leite diretamente dos tambos ou o leite em caixas de metal com garrafas de vidro do Deal (no ano de 1947 o Departamento Estadual de Abastecimento de Leite passou a usar a denominação “Deal”), serrar e rachar lenha com a machadinha para acender o fogão.

  Quando não havia uma tulha, uma espécie de celeiro, uma grande arca usada para guardar cereais ou outros produtos, no chão, pelo lado de fora do balcão, havia muitos sacos de linhagem com a boca aberta e virada para cima, contendo arroz, feijão, farinha, batata e amendoim que eram vendidos a granel, recolhidos com uma concha de metal, empacotados na hora com papel comum e cordel fino ou barbante. Em cima dos sacos, geralmente a gente encontrava um ou dois gatos deitados, sonolentos, preguiçosos e dormindo a maior parte do tempo. Da porta para fora não era difícil encontrar um cachorro (cusco) enroscado, sem o menor movimento, observando os transeuntes. O cusco, geralmente pertencia a algum cliente que fazia suas compras ou “jogava conversa fora”.

  Lá na venda (armazém) a gente encontrava pó de café, Toddy, pão sovado, d’água ou doce, pasteis, mata-fome, mil folhas, bolo inglês, Q-suco, arroz, feijão, açúcar, massa, vassoura de palha, guainxuma e piaçava, tesouras, facas, creolina, os venenos Tatuzinho, Fumeta, Flitz, espiral Boa Noite – mata moscas e mosquitos, laquê, brilhantina (Glostora), gumex para o cabelo, perfume (estrato), banha de porco, charque, querosene (Marca Jacaré), saponáceo, fogareiro, lampião, espiriteira (fogareiro a álcool), goma arábica e papel celofane para fazer pandorga (papagaio ou pipa), galinha, ovos, lingüiça, torresmo e material escolar. Vendiam também artigos para fumantes, cigarros avulsos ou em maços das seguintes marcas: Tufuma, Liberthy, Hudson, Quetal, Marrocos, Eldorado, Continental, fumo em rolo e palha de milho para confeccionar os tradicionais “palheiros”. Álbum de figurinhas, refrigerantes; Laranjinha, Kruch, Coca-Cola, Grapette, Gazoza, Baré-cola, Pepsi-cola e Soda limonada. Tecidos em rolo que eram vendidos em metro e medidos com um pedaço de madeira de acordo com o pedido do cliente.

  Alguns armazéns vendiam carnes, louças, panelas e até medicamentos; Emulsão Scott, Rum Creosotado, Regulador Xavier, Elixir Paregórico, Biotônico Fontoura (fortificante e antianêmico criado em 1910), Phimatosan, Pilulas Lussen e as do Doutor Ross (pequeninas, mas resolvem), xarópe Bromil (o amigo do peito) e São João. As bananas eram vendidas em dúzias, a lenha em talhas e o pão em quilo. No fundo da sala poderíamos encontrar enxada, pá, ancinho, alicate, torquês, armadilhas, gaiolas, alçapão, rolos de arame farpado para cercas e fole para fumigação com pó de gafanhoto ou Tatuzinho.

   A maior parte das mercadorias ficava em prateleiras atrás do balcão de madeira. O balcão era bastante arranhado pelo uso, manchado com os círculos de umidade dos copos de bebidas e nas beiradas, muito queimado com as baganas ou tocos de cigarros dos clientes. O balcão sempre apoiava uma balança usada para pesar quase tudo que era vendido. A balança era composta por dois pratos de metal amarelo, um de cada lado dos “fieis”, duas ponteirinhas que acusavam o equilíbrio da mercadoria com os pesos de ferro ou bronze, colocados em cima de um dos pratos. Depois os pesos eram guardados num suporte de madeira cheio de buraquinhos organizados em tamanhos diferentes desde os menorzinhos até os maiores e mais pesados. Tudo isso, muito antes das balanças Filizola, aquelas com apenas um prato e ponteiros. Balanças Eletro eletrônicas e digitais ainda eram coisas de outro mundo.

  Sobre o balcão também ficava o baleiro. Um carrossel de vidros cheios de balas; Quebra-queixo, Brocoió, Mocinho, Xaxá, rapadurinhas, Torrão-gaúcho, chiclete Adams e sorvete “quente” - uma espécie de bola de massa, maria-mole açucarada em uma casquinha. Em baixo, no balcão, havia uma vitrine de vidro onde eram expostas as bijuterias e algumas peças de roupas; calças de brim Coringa – “Far-west”, camisa volta ao mundo, bomlom, islaque, alpargatas, tamancos, guides, congas e chinelos de couro. Enfim, no armazém se poderia comprar tudo em matéria de secos e molhados, fazendas, armarinhos e ferragens em geral. O papel higiênico, por exemplo, não era muito comercializado, pois a maioria das pessoas utilizava na latrina (patente), jornais velhos e papéis de embalagem dos pães que eram bem macios para higiene íntima.

   Era comum encontrar no armazém um quadro humorístico, com uma ilustração dividida em duas partes. Na primeira parte, um homem magricela, mal vestido, assentado no chão, num armazém com prateleiras vazias, cheias de teias de aranha e ratos, um cão (guaipéca) magro, com os dizeres; “Eu vendi fiado”. Na outra metade do quadro, um homem gordo, bem sucedido, bochechas rasadas, papada redonda, assentado numa poltrona, numa loja rica, cofre aberto  cheio de dinheiro, fumando um charuto, com os dizeres: “ Eu vendi a dinheiro”.

  As mulheres, pela manhã, adquiriam tudo que era necessário para a dispensa e consumo da família. Muitos utilizavam o sistema de conta no caderno oferecido para as pessoas mais conhecidas, que eram fregueses do armazém.  Consistia de uma caderneta para cada família onde eram anotadas as compras. Quando o comerciante recebia o dinheiro, as anotações eram riscadas e a dívida ou conta estava paga.

  No final da tarde os homens chegavam do trabalho para tomar aperitivos; cachaça com Undeberg, coquinho, butiá, funcho, abacaxi, losna, Conhaque de alcatrão São João da Barra (desde 1908), jogar cartas, dominó e beliscar picadinhos de queijo com “salamito”, pepino, torresmo ou outra coisa qualquer, defronte ao balcão ou em uma pequena mesa no cantinho do armazém. Era a hora de botar a conversa em dia, fazer fofocas, mentir um pouco, contar piadas e causos o que ajudava há passar o tempo e a monotonia de uma cidade que não conhecia supermercados, centros comerciais, shoppings ou os perigos de viver com insegurança.


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